HAVENDO POSSUIDORES SUCESSIVOS, EM FAVOR DE QUAL DELES SE OPERA A USUCAPIÃO DO IMÓVEL?
A usucapião (também denominada prescrição aquisitiva) consiste na aquisição originária da propriedade (ou de outros direitos reais) sobre bens móveis ou imóveis, em virtude de se exercer sobre a coisa posse pacífica, ostensiva, ininterrupta e com animus domini (com convicção ou intenção de ser dono), durante um certo lapso temporal. A despeito da amplidão do conceito, trataremos neste artigo apenas da usucapião da propriedade de bens imóveis.
Tem-se, portanto, como pressupostos essenciais da usucapião a posse, revestida das características acima, e o tempo, que varia conforme a modalidade de usucapião (ordinária, extraordinária, especial urbana, etc.). Há, também, outros elementos acidentais (como justo título, boa-fé, utilização para moradia, inexistência de outro imóvel no patrimônio do adquirente, etc.) que são peculiares a uma ou algumas das diversas modalidades de usucapião existentes.
Como dito, a usucapião tem natureza de aquisição originária, pois não deriva de relação jurídica entre o adquirente e o antigo dono da coisa, já que o usucapiente “não obtém o bem do antigo proprietário, mas contra ele”[1]. Assim, “o novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo”[2], pouco importando se, por exemplo, o título de propriedade anterior era nulo, eis que não há transmissão do direito real pré-existente, mas sim a criação de um direito de propriedade autônomo, constituído por força de lei.
De mais a mais, a lei considera que, para fins de usucapião, as posses exercidas por pessoas diversas sobre a coisa podem se somar, desde que sucessivas, contínuas e com as características exigidas pela lei. Assim, a posse exercida anteriormente por outrem pode ser utilizada para complementar o tempo de posse necessário à consumação da prescrição aquisitiva. É a chamada acessio possessionis, disciplinada no artigo 1.243 do Código Civil.
À vista disso, se as posses consideradas para fins de usucapião tiverem sido exercidas por pessoas distintas, em momentos sucessivos, qual delas se tornará a proprietária do bem?
Pela leitura isolada do artigo 1.243 do Código Civil, poder-se-ia concluir que a usucapião sempre aproveitaria ao último dos possuidores sucessivos, mas não é bem assim. Por derivar da incidência direta da lei, a usucapião se opera independentemente de qualquer formalismo. Antes mesmo do reconhecimento judicial ou extrajudicial da usucapião, e de que tal informação ingresse no Registro Imobiliário, aquele que venha a preencher os requisitos legais de alguma modalidade de prescrição aquisitiva tornar-se-á, imediatamente, o proprietário do bem.
Assim, praticamente toda a doutrina[3] e o STJ entendem que “a sentença proferida na ação de usucapião tem natureza meramente declaratória”[4], posto que apenas reconhece uma situação jurídica que a precede. Aliás, o próprio artigo 1.241 do Código Civil dispõe que o possuidor poderá “requerer ao juiz seja declarada adquirida, por usucapião, a propriedade imóvel”, tornando induvidosa a imediata aquisição do bem pelo usucapiente, tão logo presentes todos os elementos da hipótese de incidência legal. A partir disso, resta nítida a possibilidade de declaração da usucapião em favor de quem não mais seja possuidor do bem, no momento da propositura da ação declaratória.
De tal arte, entendemos que o usucapiente é aquele que se encontra na posse do imóvel quando se dá o preenchimento de todos os requisitos legais de alguma das modalidades de prescrição aquisitiva, ainda que venha a transmitir a posse do imóvel a terceiro, sem que antes tenha sido requerida a declaração da usucapião.
Seria completamente incoerente com o sistema de transmissão da propriedade imobiliária sustentar que a usucapião pudesse ser reconhecida em favor do sucessor do usucapiente na posse do imóvel, por força de uma espécie de “transmissão informal do direito de aquisição originária da propriedade”. Note-se que esse não é o sentido do artigo 1.243 do Código, que apenas permite seja considerado, no cômputo do lapso temporal, a posse anteriormente exercida por outrem, desde que, é claro, o possuidor anterior não tenha, ele próprio, adquirido a coisa por usucapião. Não há, de forma alguma, a sub-rogação do último possuidor no direito de propriedade já adquirido por seu antecessor, o que, aliás, criaria um sistema paralelo e informal de transmissão da propriedade imobiliária através da simples cessão da posse.
Embora não tenha enfrentado especificamente a questão, o STJ já se posicionou contra a possibilidade de transmissão da propriedade imobiliária usucapida, antes de seu registro em Cartório:
[..] O registro da usucapião no cartório de imóveis serve não para constituir, mas para dar publicidade à aquisição originária (alertando terceiros), bem como para permitir o exercício do ius disponendi (direito de dispor), além de regularizar o próprio registro cartorial. [...][5]
Assim sendo, para que adquira a propriedade da coisa por usucapião, o sucessor do possuidor que já tenha satisfeito todos os requisitos da prescrição aquisitiva deverá preencher, por si mesmo, os pressupostos legais para uma nova usucapião, não podendo se valer do tempo de posse de seu antecessor, que já se havia convertido em proprietário do imóvel.
Fonte: JUSBRASIL